Óbidos, vila medieval
As ruas estão apinhadas de gente.Vêm-se mercadores, mendigos, artesãos, cavaleiros, frades e prostitutas…
Desfile medieval |
A peste negra grassa pelo casario da vila levando velhos e novos na sua gadanha implacável. A miséria do povo é total. Os padres dominam os miseráveis
com ameaças de inferno e de perdição.
Os tentáculos tenebrosos da Santa Inquisição, envolventes e
frios como a névoa da madrugada chegam a todo o lado, mantendo presente no
subconsciente popular o terror de torturas indescritíveis e da morte nas
fogueiras dos Autos de Fé.
Num mundo à parte vive a Nobreza. Não são pessoas como as
outras, vê-se bem. Têm um tom de pelo mais claro, cabelo loiro e olhos claros.
Descendem dos últimos povos chegados à península. Dos Godos e Visigodos, povos
da planície do Reno, trazidos pelos Romanos como mercenários, a fim dominar as
revoltas cada vez mais frequentes e que anunciavam o fim do império para muito breve.
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Óbidos, 3 de Agosto do ano da graça de 2013.
Decorre na mesma vila de há 500 anos, uma feira
medieval, onde todos os visitantes podem ser figurantes, vestindo os trajes da
época, próprios ou alugados.
O ambiente visual será parecido com os de tempos antigos,
havendo no entanto um ar festivo, sem a miséria e terror da idade média.Pelas ruas ouve-se falar em mil línguas, desde o familiar castelhano até dialectos ininteligíveis de honoráveis cidadãos do sol nascente.
Para juntar á festa, aparecem também umas centenas de
modernos cavaleiros sem cavalo, geralmente magros e secos, vestidos com umas
roupas justas e coloridas, de sapatilhas calçadas, e que vêm para uma corrida
nocturna pelas cercanias da vila.
Os mais bravos, ou loucos (pois então,… a bravura e a
loucura são parentes muito chegados..), vão correr 50 km às escuras, outros vão
correr 25 km, e outros ainda vão caminhar cerca de 10 km.
Este evento designa-se por Trail Noturno da Lagoa de Óbidos,
organizado pelo Clube de Atletismo da vila e é já uma referência obrigatória
das corridas de Trilhos nacionais.
Momentos antes da partida |
Assim, o ponto de encontro foi em Leiria de onde seguiríamos
todos no mesmo carro, uma vez que a equipa não anda a nadar em dinheiro. Um pouco
como os “grandes” do futebol português…
Houve um aspecto a ponderar, que era novo, isto é, a
logística da refeição, que tinha de ser bem pensada. Por um lado, sendo a partida às
9 da noite, teria de se jantar até à 6h00-6h30, evitando um
qualquer restaurante desconhecido por via das dúvidas. Por outro lado tendo 50 km pela frente, não
se poderia pensar em algo ligeiro, tipo lanche.
Solução proposta: campigaz, tacho, esparguete e fiambre.
E assim foi. Chegados a Óbidos procurámos o quartel-general
do evento, e após levantar os dorsais, deu-se uma boa passeata pela vila no
meio de uma verdadeira multidão medieval. Uma ginjinha em copo de chocolate
para abrir o apetite e regresso ao estacionamento, em cujas traseiras havia um
moinho abandonado, junto ao qual se preparou o jantar. Mais uma volta à vila,
para ajudar a digestão, um café e, finalmente prontos para a aventura!
A corrida iniciou-se pelas 9 horas, com partida simbólica
junto à Porta da traição, descendo a vila pelas ruas estreitas no meio dos
turistas que davam palavras de incentivo a “esos locos que corren”!
Bom, muitos destes incentivos eram dos camaradas da corrida
de 25 km, que teria início meia hora mais tarde!
Os primeiros quilómetros correm-se a bom ritmo e começo a
pagar o erro de não ter feito um aquecimento em condições. Sinto as pernas
pesadas, dores fortes nos gémeos, passam-me ideias pela cabeça de que não vou
poder continuar muito mais tempo! Ainda não há muito tempo estive duas semanas
sem correr pelo mesmo motivo.
Mas passados 5 quilómetros as dores começam a passar
deixando a clara ideia de que terá sido apenas um problema de falta de
aquecimento prévio.
Logo de seguida chegamos a uma descida que até estava
referenciada como muito perigosa!
Assim era de facto! Tratava-se de um single track de forte
inclinação, de superfície de arenito, onde se resvalava a todo o instante. Felizmente
haviam arbustos com fartura onde agarrar, com espinhos e tudo!
Pessoalmente tenho uma enorme falta de jeito para descidas
técnicas, passando a maior parte do tempo num “cai não cai”, a escorregar a
todo o instante, ajudado ainda pela sola das sapatilhas que já foram novas!
Terminada a descida, voltamos aos estradões e caminhos onde
se pode correr a bom ritmo.
Por vezes até depressa demais para ver as marcações! Cerca do
km8, numa longa descida em direcção a uma aldeia (Amoreira) vemos um grupo de
pirilampos vindos em sentido contrário ao nosso encontro. Conclusão, tínhamos
passado um desvio sem o ver! Cerca de um quilómetro a mais nas contas finais!
Os quilómetros seguintes são feitos com alguma facilidade,
por estradões, pinhais, caminhos rurais e outros que tais…
Perto do km20 começa-se a ouvir o barulho do mar e a sentir
o cheiro agradável da maresia.
Começa então a travessia da zona de dunas que vai pela costa
até à margem sul da lagoa de Óbidos.
São cerca de dez quilómetros em areia, bastante
desgastantes, de esforço acrescido devido à areia solta e do carrossel do sobe
e desce característico das dunas.
As marcações aqui eram algo esparsas, sendo frequentes os
arrepios de caminho devido a enganos.
Por duas ou três ocasiões em que segui à cabeça de um grupo,
acabei por me enganar no caminho levando comigo os meus seguidores. Por sorte
havia sempre alguém mais atento que se apercebia e alertava!
A certa altura surge uma ravina de areia, tipo canyon, onde
mais uma vez houve lugar a uma sessão de escorreganços e de quedas aparatosas! Sorte
o chão ser macio!
Terminada a zona das dunas e da areia, segue-se através de
uns passadiços de madeira, que vão serpenteando pelo recorte da margem da lagoa.
É um alívio deixar o areal! Corre-se melhor, mais leve, mais
rápido, todavia, é bem evidente o desgaste provocado pelas dunas. Também
não esquecer que já haviam 30 km nas pernas!Na margem da Lagoa de Óbidos, cerca do km30 (Foto de Victor Correia) |
Destaque agora para os abastecimentos, que apesar de
relativamente poucos, estavam adequados à distância e características da prova.
A última parte do percurso da lagoa trouxe alguns dissabores
a muito boa gente, comigo incluído!
Zona pantanosa e escorregadia, impossível de atravessar sem
meter os pés dentro de um lodo pestilento e malcheiroso.
Escorreguei várias vezes até que caí mesmo! Meio de lado,
enterrando um braço no lodo quase até ao ombro! Bem, podia ter sido pior se
tivesse caído de cabeça!
Após deixar as margens da lagoa, entra-se novamente em zonas
de pinhal, embora devido à escuridão não fosse possível ter uma noção muito
clara da paisagem em volta. Fica para uma próxima oportunidade explorar a zona
à luz do dia, talvez de bicicleta!
Seguindo a rota, chega-se ao abastecimento do km40.
Faz-se um check-up de avaliação das condições físicas, das
mazelas, da comida, bebida, … tudo ok? Siga!
Se não houver surpresas, daqui a uma hora e pouco estamos na
meta.
Neste abastecimento estou um pouco à conversa com um colega
velho conhecido, que corre notoriamente mais do que eu, mas que se queixa de
dores num tendão ou qualquer coisa do género. Diz-me que vai gerir o resto
entre correr e caminhar. Sai primeiro, eu fico mais um pouco e depois vou
também. Acabo por ultrapassá-lo um quilómetro mais à frente.
No km42 tenho a grande surpresa da noite! Alcanço o meu
colega de equipa, que vai a caminhar!!! Pergunto o que se passa e responde que
vai com problemas de estômago e que tem dificuldade em correr. Ainda tento
incentivá-lo, mas quando não dá, não dá. E cada um é quem melhor sabe de si! Como
nota de rodapé, na cronometragem ao km30, ele tinha 28 minutos de avanço em
relação a mim! Agora façam as continhas, como dizia o outro! Pode-se estar bem de
músculos, caixa, coração, etc., mas um problema relacionado com a digestão pode
comprometer tudo!
Perto do final, já no sopé da encosta da vila temos de
atravessar um túnel de um viaduto ferroviário, completamente alagado de água
suja e malcheirosa. Momento menos agradável!
Todavia, depois de quarenta e oito quilómetros e, com a meta
já ali ao virar da esquina, não chegou para desmoralizar as tropas. O pensamento
era apenas em chegar ao fim o mais depressa possível!
Uma última subida que se fez toda a trote, com energias
vindas sabe-se lá de onde, mais uma escadaria feita de toros de madeira e
finalmente, a muralha da vila, a par da qual se correm os últimos duzentos
metros para entrar na Porta da Traição, que agora é o nosso Arco do Triunfo!
Muitos parabéns à
organização e aos atletas de todas as distâncias!
Voltamos em 2014!
Classificação da equipa do PelaEstradaFora:
- Paulo Oliveira: 6h 39m 20s, 109º lugar da geral
- Paulo Amaro: 6h 45m 43s, 113º lugar da geral
Total chegados: 272 atletas
Parabéns Paulo, pelo recorde de distância (é não é?), pelo prova superada e tb por este relato que está muito bom. Tens dificuldades em descidas muito técnicas? Temos algo em comum ... mas eu tenho dificuldades em todas (quase) as descidas...passa tudo por mim :)
ResponderExcluirPois é, nestas distâncias nunca se sabe o que pode acontecer, num minuto vais muito bem, faltam "apenas" meia dúzia de km e pensa-se que está no papo, e depois vem algo que nos obriga a uma luta enorme "só" para chegar ao fim...parabéns tb ao teu colega de equipa, que mesmo com as dificuldades foi até ao fim.
Abraço e boa recuperação
P.S Qual a próxima?
Obrigado Carlos! Foi um recorde de distância superado. Devagarinho mas superado! A prova é um Must do trail de verão. Foi a primeira participação e para o ano quero ver se volto! Pensa nisso também para 2014, vais gostar. O meu colega Paulo Amaro é de outro campeonato, mas desta vez teve este percalço, acontece aos melhores!
ExcluirA próxima prova certa é o Red Cross Trail da Figueira da Foz, antes disso talvez os moinhos de Penacova, mas ainda não é certo.
Um abraço e boas corridas!
Parabéns Paulo, tanto pela prestação como pelo relato. Estive de serviço no abastecimento dos 30kms mas não dei por ti a passar, as minhas desculpas. A tal descida técnica aos 5 kms foi aberta na íntegra por mim e outro colega (José Duarte), ainda escavamos alguns degraus nas zonas que nos pareceram mais perigosas. Também é verdade que faze-la de dia assusta menos.
ResponderExcluirContinuação de bons treinos e relatos dessas aventuras que nos vão deliciando.
Um abraço.
Obrigado Marcus! Temos de tirar o chapéu a quem teve o empenho e a dedicação para montar todos estes trilhos! A descida dos 5km estava um espetáculo, os meus parabéns, apesar de estas descidas serem um dos meus (muitos) pontos fracos! Também não te vi nos 30km, mas com aquela azáfama não é de admirar!
ExcluirPara o ano lá estarei novamente.
Um abraço!
Parabéns pela prova e pelo relato! Bela estreia de distância. (Essa foto ficou muito boa!)
ResponderExcluirEu, que sou meio pitosga, sou da opinião que as marcações de percurso eram muito pequeninas! Estava à espera de fitas e aqueles quadradinhos eram muito fáceis de falhar... Será que houve alguém que não se tenha enganado uma única vez? Hmmm....
Para o ano estou lá outra vez!
Bjs e continuação de boas corridas.
Obrigado! Gostei muito da prova, como já se percebeu! Limpou-me também um registo menos bom de uma outra prova noturna que tinha feito em 2012 em Alvaiázere, não por culpa da prova propriamente dita, mas pela minha dificuldade em lidar com a falta de luz!
ExcluirEm Óbidos as marcações também me pregaram algumas partidas, mas reconheço que será um problema meu!
Então lá nos encontraremos para o ano!
Bjs e bons treinos para a Serra d'Arga!